"E rangiam os velhos e enferrujados pedais de ferro das máquinas de costura Singer, num vai e vem sem fim.
Pela fresta do armário de escura madeira, meus olhos acompanhavam o movimento de um par de grossas meias cinzas de lã a pedalar, pedalar, pedalar...
- Acho melhor abrir a porta do armário, hoje está muito abafado, comentou alto a noviça, quase vesga por tentar enfiar a linha na agulha fininha de bordar.
- Também nesta sala tão apertada qualquer um fica (resmungou Elvira com o rosto em brasa enquanto abria as costuras com um pesado ferro de passar).
Pela única janela, que dava para o pátio do colégio, entrava o pouco ar da sala e o cheiro de roupa guardada, recendia se misturando a naftalina e ao pó branco acumulado sobre a mobília.
De todas as cores retalhinhos eram pacientemente recortados - das sobras de peças de tecidos comprados com as rifas - e jogados numa enorme caixa de papelão sem tampa.
Eram os mesmos que coloriam as colchas já prontas e empilhadas sobre a mesa, esperando pela hora de empacotar.
Apressados os sapatos de D. Josefina - a costureira das grossas meias cinzas de lã transitavam pela sala, exigentes, de um lado para o outro supervisionando o trabalho de meia dúzia de moças, aprendizes dos ofícios do bordado e da costura - alunas semi-internas do colégio.
D. Josefina era uma senhora magra, pálida, de nariz pontudo que muito raro sorria; às vezes estalava os dedos imitando castanholas num solitário balé para logo em seguida ajeitar com o dorso da mão os teimosos cabelos brancos que em desalinho viviam a cair por sobre a testa.
- Está tão quente hoje...tornou a reclamar Elvira sem nada poder fazer; o tempo e o vento não passam mesmo por aqui - enxugando o suor do rosto, resignou-se.
Certa vez, D. Josefina apoiando em falso o braço, tombou sua cadeira sobre o armário, fechando a única fresta por onde passava o pouco ar.
- Não “feche-casa, não “feche-casa” - lá do fundo da madeira tentava fazer minha voz chegar aos seus ouvidos.
Rápida, com o bico dos sapatos, D. Josefina abriu as duas portinhas, curvou com dificuldade seu corpo bastante magro e arrancou num só gesto a colcha e a escuridão que me sufocavam.
Até hoje não sei de quem teria sido tão infeliz idéia - a de me fazer dormir todos os dias dentro daquele armário, enquanto mamãe dava aulas no 4º. ano primário do Seminário das Educandas.
Adorava sentir o vento no meu rosto – a sensação de liberdade quando conseguia escapar me esgueirando por baixo da mesa de corte, passando espremida atrás da caixa de papelão, aproveitando um descuido de Elvira e finalmente correr através dos longos corredores encerados olhando o jardim interno através dos arcos recortados.
Rapidamente chegava a uma enorme porta de quatro folhas almofadadas que abria devagarinho; espiava para ver se não havia ninguém e corria até uma escadinha lateral ao palco de tacos de madeira lixada fechado por uma pesada cortina de veludo vermelho escuro com largas passamanarias douradas na barra, indo parar numa saleta onde personagens eram silenciosamente guardados esperando a hora de entrar em cena.
A bailarina de tule rosa e seu apaixonado soldadinho de chumbo.
Cem pérolas bordadas sobre o corpete da saia de tafetá azul celeste e cristais coloridos faiscavam entre as fitas douradas e prateadas entrelaçadas na ponta da varinha de condão da Fada Madrinha.
Quantas vezes, determinada empurrei uma já gasta escadinha de madeira de três degraus, para na ponta dos pés espiar encantada dentro do guarda-roupa próximo a porta da entrada, uma dúzia de anjos com longas asas de penas brancas e as coroas de ouro com estrelinhas faiscantes.
Os 3 Reis Magos e suas enormes capas de veludo e brocado, estavam dobradas na prateleira maior junto com as máscaras dos animais em papier mache.
No outro armário Pierrot de longas pantalonas em cetim azul e branco e seu alaúde aguardavam a volta da Colombina.
Uma holandesa de vestidinho de veludo azul marinho e avental de organdi branco bordado com seu par de tamanquinhos de madeira e a espanholinha com longa saia rodada e pente de tartaruga que prendia a mantilha sobre a cabeça, esperavam pacientemente penduradas em cabides.
Ali, estavam meus amigos: o Macaco de pelúcia marrom com suas bananas amarelas de flanela pintada; o elegante Vagalume que acendia e apagava de verdade; um grupo de Borboletas com coloridas e transparentes asas; a Onça de pelúcia; o Sr. Leão e sua enorme juba de lã penteada...personagens de um “Carnaval na Floresta” – peça que mamãe escreveu para uma festa na escola.
Na última prateleira do armário, lugar de honra: as coroas do Rei e da Rainha - cravejadas de pedrarias dividiam espaço com o cajado do Pastor e um esperto Sací Pererê em algodão vermelho com cachimbo de barro e touca pontuda...
As histórias tomavam forma quando tocava as vestes, acariciava as plumas, sentia a delicadeza das sedas.
Insistente, o sino do pátio avisava a hora do lanche da tarde.
Me despedi da turma toda como fôsse a última vez, fechei as portas dos armários e corri seguindo o cheiro da torta de banana que vinha da cozinhada Irmã Jovita.
D. Josefina devia estar dobrando a última colcha de retalhos, Elvira desligando o ferro para então contar a produção do dia, a noviça das tranças agachada a me procurar pela saleta antes de sair correndo pelo pátio."
Margarida Nogueira, 1996.